Ficha 4×1
Data: 09/12/2012 à 12/12/2012
Saímos de: Guadalajara, Jalisco – México
Distância total: Aproximadamente 275 km
Onde dormimos: Nas barracas. Em um camping em Guanajuato com o nome de Morrill Van Camp.
Pneu Cheio: A cidade de Guanajuato é o próprio pneu cheio! Suas praças, vielas, lendas e museus. Além de não ser dominada pelos ‘gringos’.
Destino final: Guanajuato, Guanajuato – México (passamos também em San Miguel de Allende)
Tempo de viagem: Pouco mais de 3 horas (até San Miguel de Allende é 1 hora a mais)
O que comemos de bom: Doces de leite, goiaba, abóbora, geléias, frutas cristalizadas… numa doceria ao caminho do povoado de Valenciana (que não é a famosa La Catrina).
Pneu murcho: Difícil esse! Talvez a pouca opção de camping. Na verdade só havia o qual ficamos e quase não conseguimos ficar, pois havia sido reservado para um grande grupo de viajantes.
Trajeto: Saímos de Guadalajara pela estrada México 80, em certa altura seguimos em direção a Aguascalientes onde tomamos as estradas México 45 e, em seguida, México 110 até a zona central de Guanajuato. Estrada em boas condições.
“A população da formosa cidade não cresce, mas ela é visitada por turistas que contemplam o exuberante esplendor dos velhos tempos, passeiam pelas ruazinha de nomes românticos, ricas de lendas, e se horrorizam com as 100 múmias que os sais da terra conservaram intatas.” (GALEANO, Eduardo – As veias abertas da América Latina. L&PM, 2011 – tradução de ‘Las venas abiertas de América Latina’, de 1978)
Das montanhas de Valenciana, no estado de Guanajuato, sangraram uma das maiores quantidades de prata que já se teve conhecimento na história da humanidade. Milhares de indígenas e mestiços perderam suas vida nas minas da região sob exploração espanhola, para financiar o desenvolvimento industrial europeu. Ainda segundo o livro de Galeano, na segunda metade do século 19, o padre Lucio Marmolejo comparava os jardins suspensos de Semíramis, na Babilônia, aos da cidade de Guanajuato. Marmolejo destacava, entre outros, os teatros, praças, torres e cúpulas nas encostas das verdes montanhas que cercavam a cidade.
Localizada no meio de um vale, Guanajuato é formada por estreitas vielas, muitas ruas sem acesso a carros e longas escadarias que permitem o ir e vir de seus cidadãos pelo centro histórico. Suas estreitas e curvas ruas ainda de pedra, a ausência de grandes letreiros ou semáforos e suas inúmeras praças e construções de mais de 2 séculos, ajudam a conservar o aspecto colonial do que restou dos tempos “áureos” do ciclo da prata. Além disso, a cidade também foi palco do primeiro levante que prenunciava a Guerra de Independência Mexicana que teria sua primeira batalha ali próximo, no próprio estado de Guanajuato. É, também, local onde nasceu um dos mais ilustres pintores mexicanos: Diego Rivera – marido de Frida Kahlo. Somando-se tudo isso aos inúmeros eventos culturais que a cidade hospeda anualmente, a UNESCO, em 1988, conferiu a este pequeno charme do interior mexicano, o título de Patrimônio Mundial da Humanidade.
Mas, não bastando sua relevância histórica e cultural para a América Latina, Guanajuato também é conhecida por suas incríveis lendas. E era assim que começava nossa visita…
Logo pela manhã, seguimos com a Tanajura direto para o centro histórico. Estacionamos e logo fomos abordados por um dos inúmeros guias credenciados que existem na cidade. A curiosidade que nos despertou naquele curto caminho até ali, principalmente devido aos longos túneis e pela quantidade de construções coloniais, foram suficientes para não pensarmos duas vezes em contratar um guia para nos apresentar a cidade. Introduções iniciais feitas, caminhamos até o ‘Callejón del Beso’ (o beco do beijo).
Reza a lenda que um mineiro – trabalhador das minas de Valenciana, e não o cidadão natural do Estado onde nasceu Tiradentes – de nome Carlos era apaixonado pela espanhola Doña Ana. De família nobre, o pai de Ana queria que ela se casasse com um espanhol rico e parasse de dar atenção ao pobre Carlos. No entanto, o mineiro apaixonado não desistiu. Ele descobriu quem era o dono da casa em frente a de Ana, na qual suas sacadas quase que se tocavam, de tão estreita que era a viela (ou beco, que em espanhol significa callejón). Carlos gastava todo seu salário pagando aquele aluguel para poder vê-la da sacada e trocar beijos apaixonados. Numa noite, no entanto, o casal foi flagrado pelo pai de Ana que jurou a moça de morte caso voltasse a vê-los juntos. Mas o amor de ambos era mais forte e eles ignoraram o pedido do pai. A tragédia foi consumada quando, mais uma vez, o pai encontrou ambos juntos na sacada. Num impulso irracional o pai empunhou uma faca nas costas da própria filha enquanto o mineiro dava a ela um último beijo de despedida. Hoje em dia, dezenas de casais apaixonados diariamente seguem a tradição de darem um beijo no terceiro degrau da escada embaixo da sacada onde ocorreu o último beijo de Carlos e Ana. (Mas nós não seguimos a tradição…hahaha)
E assim, saímos de lá apreciando aquelas casas do século XVIII nas ruazinhas estreitas com menos de 1,70m. Ao redor da Plaza de la Paz é de chamar a atenção o nível de conservação das inúmeras casas e mansões da antiga elite Guanajuatense, bem como o Palácio Legislativo e a Basílica de Nuestra Señora de Guanajuato, construída em estilo barroco por volta de 1765. Outra construção impressionante de Guanajuato é o Teatro Juaréz, que teve seu início no final do século 19 e foi inaugurado pelo ex-presidente e ditador, Porfírio Diaz, com a ópera Aida, de Verdi. O Teatro Juaréz, hoje, recebe diversos eventos de música e dança.
Também, chamam muita atenção na cidade suas inúmeras praças. Seja com estátuas em bronze de poetas, músicos ou diversos outros artistas; seja por suas flores coloridas e a semelhança com as praças Venezianas. Fato é que toda a vida de Guanajuato se passa em torno delas. A que mais encanta, no entanto, é o Jardín de la Unión. Ponto de encontro de muitos Guanajuatuenses, a magnífica praça contém um coreto em seu centro e está cercada por árvores baixas, todas alinhadas, e com suas copas aparadas em formato de uma fatia de queijo! E foi numa terça-feira, em nosso último dia na cidade, que presenciamos um evento tradicional que acontece semanalmente no Jardín de la Unión. Uma banda local, composta de 10 músicos, tocava uma animada música latina. Casais de senhores e senhoras com mais de 65 anos e com vestimentas que denunciavam a disparidade de suas classes sociais, dançavam ali, juntos! Uma mesma música, numa mesma praça, sem que a diferença econômica os distanciasse. Aplaudidos e observados pelos mais jovens, casais curiosos, locais e turistas que se espalhavam na praça para apreciarem o concerto, numa noite verdadeiramente mágica!
Ainda nas cercanias do Teatro Juarez observa-se uma espécie de buraco na calçada cercada de vidro, onde era possível avistar uma Guanajuato soterrada. Soterrada?! Isso mesmo. Devido as suas íngremes encostas, a cidade sofreu por muitos anos com o problema das enchentes. Em 1760 e 1780 duas enormes inundações quase acabaram com a cidade por completo. Dessa forma, em meados do século seguinte, e após mais uma reconstrução da cidade, iniciou-se a construção de uma série de canais e túneis subterrâneos para escoarem o volume de água. Mas em 1960, a construção de uma barragem no principal rio ao redor da cidade, controlou de vez o problema das inundações. Dessa forma, a maioria daqueles túneis e canais construídos tornaram-se rodovias subterrâneas de até poucos quilômetros, por onde hoje passam carros, ônibus e dão mais um encanto e misticismo à cidade!
No início daquela tarde nos dirigimos para o povoado de Valenciana, onde ficavam as principais minas da cidade. Mas, antes… (uma dica para aqueles que gostam de doces e guloseimas! )…passamos numa deliciosa doceria recomendada pelo nosso guia, para comermos alguma coisa (não nos lembramos o nome da doceria, mas não era a La Catrina – muito famosa na região, mas que não nos encantou tanto quanto essa outra). Retomando…Lá em Valenciana conhecemos a igreja de San Cayetano (também conhecida como igreja de La Valenciana), que fica na entrada da de uma das mais importantes minas de prata da região: La Bocamina de San Cayetano. Suas primeiras extrações ocorreram de 1557 a 1760 e era feita basicamente por índios. A segunda etapa, entre 1761 a 1810, foi a época de bonança do ciclo da prata. Com o quase completo extermínio dos indígenas da região pelos “gentis” espanhóis, o trabalho era feito basicamente por mestiços com técnicas já um pouco mais apuradas. A visita surpreende pela profundidade da mina e por poder conhecer um dos rústicos métodos de quebra das pedras utilizando-se um simples pedaço de madeira.
Ao redor de La Valenciana ficava também o divertido museu de Tortura. Com guias vestidos como na época da Inquisição, o museu mostra as diversas ferramentas e artimanhas usadas para torturarem aqueles que eram opositores ao reinado, ou à fé católica. Apesar do ambiente mórbido e pesado, os guias conseguem transformar o clima em leve e descontraído, com piadas e brincadeiras que ironizam a situação daqueles que ali foram condenados a pagaram suas “dívidas sociais”.
Corremos dali para pegar ainda aberto um dos principais pontos turísticos da cidade. Longe de ser uma lenda, o curioso Museu das Múmias, não é necessariamente o mais legal atrativo de Guanajuato, mas o excelente estado de suas múmias enterradas provavelmente entre 1830 e 1950, somado ao ainda incerto motivo do porquê, e como, ficaram daquele jeito, são realmente de impressionar! (um pena que não podíamos tirar fotos lá dentro)
O dia chegava perto de seu fim e, para terminar como começou, fomos visitar a estátua em homenagem a uma das principais lendas da cidade: El Pipila!!! A história da Independência Mexicana conta que, após o grito de Independência feito pelo Padre Miguel Hidalgo em 1810, as tropas insurgentes (comandadas pelo próprio padre) marcharam da cidade de Dolores, até a capital do estado: a cidade de Guanajuato. O intuito dos rebeldes era desafiar o governo colonial espanhol. Em resposta, as tropas reais e a elite da região entraram no maior armazém da cidade – Alhondiga de Granaditas – para se protegerem e, assim, começaram a disparar contra os insurgentes. Imponente, o prédio só possuía uma porta de acesso o que dificultava a entrada dos rebeldes que eram constantemente atacados pelos espanhóis. Esse episódio ficou conhecido como a primeira batalha da Independência Mexicana! É aí que entra na história a lenda de um valente mineiro: Juan José de los Reyes Martínez Amaro, apelidado de El Pipila! Apoiando uma grande pedra plana nas costas como escudo, resolveu aproximar-se da imensa porta de madeira do prédio. Carregando nas mãos uma tocha e alcatrão ele ateou fogo à porta. Isso permitiu com que os insurgentes entrassem e tomassem o prédio. Em sua homenagem, foi construída uma colossal estátua num monte ao redor da cidade com uma bela vista de Guanajuato. De lá vimos o pôr do sol e tiramos belas fotos da encantadora cidade.
Dedicamos o dia seguinte para passear pela cidade com mais calma e sentir a rotina de seus habitantes. Passeamos por suas principais ruas e praças e caminhamos pelo enorme mercado Hidalgo. Visitamos o muito bem cuidado museu Diego Rivera na casa onde o mais ilustre pintor mexicano viveu os primeiros 6 anos de sua vida e nos encantamos por suas obras que nos fizeram entender a importância desse pintor – que até foi aclamado por ninguém menos que Albert Einstein – para a história do país!
Mas a Guanajuato de hoje impressiona não só pela conservação e manutenção de suas lendas e histórias. Comércio, serviços, turismo e o funcionamento da importante Universidade de Guanajuato, mantém a cidade viva e ativa! Contando com 30 mil estudantes, a universidade também entra no “clima” da relevância histórica da cidade imortalizando uma importante tradição das universidades espanholas. Há mais de 5 décadas seus estudantes realizam todas as noites as Callejoneadas, que partem todos os dias de frente ao Teatro Juárez para uma caminhada pelo centro da cidade. Vestidos como os antigos universitários espanhóis, os jovens tocam trovas para o público que, acompanhados de um cálice de vinho em suas mãos, cantam e batem palmas no ritmo da cantoria. E é no pequeno bar ‘Los Lobos’ que o passado encontra o presente. Movimentado, barulhento e com uma mesa de pebolim (ou totó, para alguns) na parte de cima, o bar toca os famosos ‘rocks’ das décadas de 60 a 90, como Jimi Hendrix, Pretenders, Beatles, Elvis, The Doors… mantendo vivo um espírito universitário, jovem e questionador.
Em Outubro, a cidade ainda hospeda o Festival Cervantino. Criado em 1972 pelos estudantes da Universidade de Guanajuato, o festival iniciou com interpretações de peças do famoso escritor Miguel de Cervantes, interpretadas pelos próprios estudantes. Além de peças teatrais, o festival hoje conta com óperas, mostras de cinema, exibições de arte, conversas e conferências acadêmicas, música e recital de dança.
É muita cultura!!!
Na saída da cidade uma enorme estátua faz alusão aos mineradores que foram a força motriz do surgimento de Guanajuato. Em tom de brincadeira, nosso guia disse que ao lado daqueles mineiros, deveria ser colocado o monumento de um homem com uma prancheta em uma mão, e um mapa na outra. Este homem representaria os guias turísticos, símbolo da atividade econômica que hoje sustenta a cidade… Mas lendas, múmias, túneis, pintores, estudantes, cultura e uma enorme relevância histórica marcam a cidade! E fato é que, das montanhas que um dia transbordaram toneladas de prata das mãos daqueles sofridos homens, nasceu também um das maiores heranças culturais que a humanidade tem registrada.
Agora, imaginem se fosse construído um monumento para cada um daqueles homens e mulheres que marcaram a história da região?! E em cada canto do nosso Brasil? Faltam heróis, ou sobra desconhecimento de nossa própria história?
Guanajuato é sem dúvida uma das cidades mais surpreendente que já visitamos!
Saímos de lá rumando para o sul. Mas antes, passamos rapidamente por um outro tesouro histórico do estado de Guanajuato: a cidade de San Miguel de Allende. Diferente da “vizinha” Guanajuato, San Miguel atrai um turismo orientado mais para ‘los gringos’ (americanos) e canadenses, além de boa parte da elite Mexicana que viaja, principalmente, da capital para lá. A cidade tem uma relevância histórica ao lado de Guanajuato por também ter sido palco de importantes batalhas da independência mexicana, além de ser terra natal do general Ignacio de Allende, um dos herois mexicanos que lutaram ao lado do padre Miguel Hidalgo. A cidade possui excelentes restaurantes, uma belíssima praça e uma riquíssima herança artística e arquitetônica, devida a sua Escuela de Bellas Artes, que hoje expõe quadros e murais tradicionais da cultura mexicana!
Quem quiser ver mais fotos dessa incrível passagem, clique aqui.
5 Comentários
Nossa!!! Quanta cultura e tradição!
É maravilhoso receber esses relatos que nos permitem conhecer a história e cultura de outros países.
Guanajuato é realmente um lugar muito interessante!
Poderiamos usar a dica da “marcação no poste”para orientar as pessoas nas enchentes de São Paulo.
BOA VIAGEM !!!
bjs
É fascinante conhecer as histórias, tradições e costumes entranhados em cada canto desse mundo. Coisas tão próximas da gente que não temos conhecimento nem pelos livros de história. Tudo isso enriquece essa jornada maravilhosa que vocês estão fazendo. Acho que vocês deveriam escrever um livro. Um abraço a todos!
Com certeza, Rogerio! Este é um dos principais motivadores da nossa viagem! Estamo amadurecendo a ideia do livro, pensamos com carinho nisso! Grande abraço!
“mas nós não seguimos a tradição” foi ótimo rsrs
Que post gostoso de ler! =)
Bjs
hahaha essa tradição não deu pra gente seguir, né Lu?
Obrigado pelo comentário! Ficamos felizes em saber!
Beijão!