Ficha 4×1
Data: 28/01/2013 à 30/01/2013
Saímos de: San Salvador, El Salvador
Distância total: Aproximadamente 240 km
Onde dormimos: Nas barracas – Uma noite na Finca Bavaria e outra na praça chamada Parque Central (ambas em Gracias).
Pneu Cheio: A cidade de Gracias : Conhecer mais a fundo a história de alguns habitantes da região de Gracias e presenciar tradições ainda vivas da cultura Lenca.
Destino final: Gracias – Honduras
Tempo de viagem: Mais de 6h30 (incluindo fronteira)
O que comemos de bom: Pratos da culinária Lenca – um frango preparado a moda local e para beber o tradicional chocolate quente lenca (esse, não gostamos muito).
Pneu murcho: As estradas no trecho que fizemos, apesar de belas paisagens de vales e rios, tem enormes buracos a cada centenas de metros.
Trajeto: Saímos de San Salvador tomando a CA 4N/Carretera Troncal del Norte. Entramos em Honduras passando por Nueva Ocotepeque e tomamos as placas sentido Santa Rosa de Copan até sairmos pela CA 11A em direção a Gracias.
O turismo de Honduras é tradicionalmente orientado dentre 3 pilares: o primeiro e mais conhecido está relacionado às suas ilhas caribenhas (como Utila e Roatán) que detém um dos maiores sistemas de corais do mundo; o segundo está focado em suas densas florestas tropicais ricas em rios e pássaros de várias espécies. O terceiro, e último, está relacionado a história e formação cultural do país, que presenciou o auge do império Maia – através da Ruínas de Copán (noroeste do país) – e mantém viva uma forte herança da cultura indígena Lenca que ainda se mantém viva ao redor de importantes cidades coloniais do país.
Tempo escasso, e orçamento ainda mais escasso, precisávamos tomar duras decisões (e imaginem que nunca é fácil tomar decisões tão complexas como essas para agradar 5 pessoas!) Conversamos bastante, consideramos experiências vividas anteriormente durante a Expedição e as oportunidades que ainda teríamos pela frente nos próximos países…e, depois de horas, decidimos que não poderíamos deixar de conhecer mais a fundo o lado histórico e cultural de Honduras. No entanto, como entramos no país pelo oeste, vindo de El Salvador (passando pela cidade de Nueva Ocotepeque), ir até as magníficas Ruínas de Copán nos forçaria um retorno enorme sentido norte pelas belíssimas, porém péssimas, estradas Hondurenhas. (o caminho mais prático e tradicional para ir à Copán é a partir da Guatemala). A decisão estava então tomada: iríamos direto para a ‘Ruta’ dos povos Lenca e nossa base seria a cidade de Gracias.
Através do Instituto Hondurenho de Turismo, no ano de 2002, 6 municípios se uniram para criarem uma entidade política a fim de fomentar o desenvolvimento sustentável e igualitário de sua população. Essas cidades foram erguidas dentro do antigo território dos indígenas denominados como Lenca e que, encabeçados pelo Cacique Lempira (señor se la sierra – e que hoje dá nome a um dos estados e à moeda Hondurenha) foram, entre 1524 e 1550, centro de resistência à dominação espanhola na América Central. A dominação espanhola acabou por transformar muito das tradições culturais dos povos Lenca, mas o trabalho atual dessas comunidades ainda buscam manter vivas muitas de suas heranças que, orgulhosamente, são encontradas nos restaurantes, artesanatos, sítios e ateliers ao redor das cidades. (Um pequeno mas muito interessante museu chamado Casa Galeano, localizado em Gracias, relata sobre vestígios primitivos de animais de milhões de anos ali encontrados, a importância do relevo local para a decisão espanhola de ocupar a região e traça um panorama sobre a cultura dos povos que habitaram a região. Desde a cultura, lendas e tradições dos Lencas, até a invasão dos espanhóis e suas conquistas.)
Gracias é a principal cidade dentre as 6 presentes na Ruta Lenca e por isso merece uma atenção especial. A cidade que hoje conta com mais de 25.000 habitantes foi fundada em 1539 pela tropa do dominador espanhol Pedro de Alvarado. Ela leva esse nome, pois reza a lenda que, após logas caminhadas pelas serras da região, o capitão Juan de Chavez, da tropa de Pedro Alvarado, avistou a cidade e exclamou “gracias a dios que hemos allado tierra llana.” (Graças a Deus que encontramos terra plana). E devido a sua privilegiada localização geográfica Gracias foi por (poucos) anos a capital de toda a colônia espanhola na América Central (até o surgimento de Antígua na Guatemala que a destronou). E principalmente por ser a mediana de ambos os mares (Atlântico e Pacífico), ali também foi construído um importante forte (Fuerte San Cristobal) para resistir às diversas invasões que o país sofreria após sua independência(1838) entre 1847 e 1852. O então presidente Juan Lindo Medina ordenou armar e fortificar Gracias, de forma a servir como base de operações do país (só que de fato o forte foi somente construído em 1864). Juan Lindo Medina está hoje ali enterrado. Ele é considerado um dos principais presidentes do país (também havia sido presidente de El Salvador) por ter declarado em Honduras a educação laica, gratuita e obrigatória. Infelizmente, o forte interesse Estadunidense em transformar o país – literalmente – em uma República das Bananas nunca permitiu o progresso tão almejado por Juan Lindo e os Hondurenhos.(desde a intervenção dos EUA em Honduras, no final do século 19, a participação das bananas dentro do total de exportações do país saltou de 11%, em 1892, para 66%, em 1913, e moldou toda a política do país nos anos subsequentes, em favor dos interesses dos investimentos das companhias Estadunidenses no país.)
O país sofre, hoje, as consequências de seu (induzido) subdesenvolvimento com tradicionais indícios que pudemos perceber, como: economia enfraquecida pela falta de investimentos e educação superior (atrasando o desenvolvimento de indústrias e empregos); ainda presença de machismo e alcoolismo dentro de algumas famílias e desorganização espacial nas cidades, com estradas ruins e zonas com grandes quantidades de lixo espalhado.
O que jamais imaginaríamos, entretanto, é que aquela pequena cidade de Gracias (que já foi por alguns anos a capital de toda a América Central!!!) nos brindaria, em tão poucos dias, com momentos tão divertidos e agradáveis e o contato com 3 histórias de vida marcantes.
E tudo começou com uma chave…
Lizeth Perdomo é proprietária de um restaurante rústico chamado Rinconcito Graciano, localizado no centro histórico de Gracias. Seu restaurante é fortemente recomendado nos tradicionais guias de turismo e muito conhecido entre os habitantes de Gracias por manter vivo a mais típica culinária Lenca. Lizeth tem 45 anos e teve sua filha com 42 – a pequena Victoria Maria, de cabelo clarinho e olhos castanhos e claros – é filha de um caso de Lizeth com um alemão que não assumiu a paternidade e deixou a criação de Victoria nas mãos de Lizeth. Dona Martita uma senhora de quase 70 anos, é a mãe de Lizeth e também mora com ela. A senhora Martita foi abandonada pelo marido machista e alcoólatra que viveu 10 anos com outra mulher antes de morrer de cirrose. Todas essas histórias nos foram contadas por dona Martita, em uma das mesas do restaurante ainda fechado.
Havíamos chegado em Gracias numa segunda-feira por volta das 20h e seguimos diretamente para o restaurante de Lizeth. Estranhamente estava fechado. Batemos à porta e saiu para fora uma senhora baixinha, muito idosa, para nos atender. Era a dona Martita. Ali do lado de fora ela nos contava que Lizeth ainda não havia voltado de uma reunião das atividades sociais da igreja matriz de Gracias, quando de repente a porta do restaurante (que também é onde moram Martita, Lizeth e a pequena Victoria) se fechou. Dona Martita estava presa do lado de fora! Perguntamos o que poderíamos fazer para ajudá-la e Martita (por se considerar mal vestida para ir apenas de chinelo à casa de Deus) pediu-nos para ir até a igreja procurar Lizeth e pedir-lhe sua chave para abrir a porta para sua mãe. E lá fomos nós encontrar alguém que nunca havíamos visto na vida! Tão logo encontramos Lizeth, ela entregou-nos a chave e pediu para que esperássemos lá com sua mãe por umas horinhas e que, tão logo terminasse suas atividades, iria nos receber em seu restaurante. E assim passamos mais de 1 hora e meia arranhando nosso espanhol com a simpática senhora que nos contava muitas histórias.
Dona do restaurante, Lizeth Perdomo estudou Marketing e trabalhou muitos anos em La Ceiba (uma das principais cidades de Honduras). Trabalhou com projetos da prefeitura (de Gracias e região) na mesa desenvolvimento e cultura num projeto envolvia projetos relacionados a saúde, educação e arte. Interessada no desenvolvimento de sua comunidade, Lizeth estudou a fundo, por muitos anos, a cultura Lenca e também atua como guia local, sendo a única mulher, dentre os 14 que existem na cidade. Participa também como voluntária em atividades de assistência social e coopera em atividades da igreja católica da cidade. Seu mais recente sonho (que já conta com projeto de arquitetura pronto e aguarda somente a saída de recursos financeiros externos) é transformar sua casa e restaurante em uma hospedagem sustentável.
Com um discurso sempre em prol do desenvolvimento dos negócios locais, Lizeth é um exemplo de cidadã comunitária. Como seus trabalhos na paróquia haviam terminado tarde, decidimos deixar nossa refeição com ela para o café da manhã (afinal ela é muito detalhista e prepara tudo na hora usando-se inclusive de panelas, talheres, cumbucas e utensílios feitos pelas próprias comunidades Lenca). Saindo dali famintos fomos a uma pizzaria local que, apesar de estar fechada, os primos Willian e Carlos, tão logo descobriram que éramos brasileiros, fizeram questão de reabri-la e nos preparar umas pizzas. Muito simpáticos e piadistas, sentaram-se conosco à mesa e depois de muito nos perguntarem sobre o Brasil, colocaram vídeos com músicas e danças típicas de Honduras, a Punta – que tem ‘ascendência’ Garífuna – e a conversa rolou solta até tarde! Carlos estava retornando dos EUA depois de uma frustrada tentativa de melhora de vida. Feliz com o novo negócio, ele ainda estava abalado de ter deixado para trás sua filha e esposa que, apesar de Salvadorenha, havia crecido nos EUA. Papo vai papo vem, não nos demos conta que já se passavam das 23h! Corremos de volta à Finca Bavaria (uma pequena propriedade que no passado havia sido uma pequena plantação de café) e o senhorzinho de mais de 70 anos, que tomava conta da Finca, estava dormindo e nos deixou trancado do lado de fora!!! Entramos em desespero pois a Tanajura estava lá dentro!!! A solução?! Oras, nossa única alternativa era pular o muro! E lá fomos nós lembrarmos mais uma vez os tempos de colégio! Lá estavam 5 marmanjos fazendo “pezinho” pro outro pular o muro…hahahaha
Na manhã seguinte, como combinado, retornamos para um café da manhã preparado pela Lizeth. Combinamos também de passar o dia com ela para conhecer mais sobre os moradores da região e sobre a cultura Lenca. E lá fomos nós… primeira parada: o sítio de sr. Maximino Rivera!
O Sr. Maximino é daqueles senhorezinhos que você adoraria conhecer um dia na vida e poder passar o dia com ele no campo, caminhando sobre suas propriedades e ouvindo suas histórias… E foi exatamente o que fizemos. Muito humilde e sem saber ler ou escrever, sr. Maximino sempre cultivou suas próprias terras e criou seus mais de 5 filhos.
Muito humilde, o senhor Maximino não sabe exatamente onde fica o Brasil. Ou até se já nos tornamos uma República independente. Não tem ideia das dimensões do nosso país nem tampouco sabia que o Brasil era o país onde estava localizado o colossal “rio que quase não se vê a outra margem”… “dentro da grande floresta” (amazônica), que uma vez assistiu num documentário e que tanto o impressionara. Mas o que ele sabia do Brasil é que, uma vez – dizia ele – escutou na rádio que é um dos países mais importantes na produção de café e referência mundial! No qual, há alguns anos atrás – ele prosseguia – uma crise fez aumentar os preços do café ali na região. Mas ele, ‘seu’ Maximino, nem sempre cultivou café. O produto havia sido recentemente inserido em seu cultivo rotativo que também conta com amendoim, cana, milho e, incrivelmente, a tilápia! Que é mantida em tanques abastecidos por um sistema de 5 km de canos qem vem desde um ponto mais alto do rio da região até sua pequena e frutífera propriedade, aos pés das mais altas montanhas hondurenhas! Ele nos apresentava orgulhosamente suas terras e ao final nos brindou com uma garapa tirada das canas plantadas ali por ele mesmo! Mas o que mais nos impressionou eram seus conhecimentos de produção de gás metano através dos restos orgânicos de sua plantação. Com os conhecimentos adquiridos por uns técnicos que ofereceram treinamentos para os produtores da região (muitos anos atrás), Sr. Maximino faz o seu proprio gás de cozinha numa espécie de estufa, e com o excesso de matéria orgânica faz adubo para sua própria plantação (compostagem). Incrível!!!
Conversamos bastante e ele também nos perguntou bastante… falamos sobre as terras do brasil, seu clima e relevo. Sobre a economia atual e quantos filhos uma família brasileira tem em média hoje em dia (dado as dificuldades de se criar e educar um filho atualmente). E ele se encantou em saber o quão extenso era o continente (em quantidade de terras contínuas) por ser possível dirigir tantos quilômetros sem cruzar nenhum mar! (E é verdade! Se pararmos para pensar, realmente impressiona a possibilidade o continente americano nos possibilita de irmos praticamente de um pólo a outro, sem, teoricamente, a necessidade de grandes navegações!) E como todo Centro-Americano, ele adorou ver uma nota de Real e logo entendeu a conversão de 1 Real para 10 Lempiras.
Ao final de nossa visita, sr. Maximino se emocionou e nos agradeceu por aquela tarde que, segundo ele, o encheu de alegria e aprendizado. Mas quem aprendeu verdadeiramente fomos nós que tivemos uma aula de agricultura e conceitos de aproveitamento e valorização dos recursos naturais: ali, in loco, a partir da humildade de um homem simples e trabalhador que criou uma família grande e que hoje conta com netos estudando engenharia na Universidade em Honduras, e que são muito orgulhosos do avô!
Ao final daquele dia fomos visitar as oficinas do Atelier caseiro chamado ‘Con el arte en las manos’, da dona Desideria. Ali presenciamos um típico atelier de descendentes da cultura Lenca e o cuidadoso e preciso trabalho de seus filhos e netos produzindo produtos de argila. É impressionante o tempo que levam para fazer cada peça (muitas sob encomenda – que vai até para os EUA e para uma turma de faculdade) e o preço tão baixo cobrado por eles! O filho de dona Desideria, Leonel, pagou seus estudos do ensino médio e os 2 primeiros anos da faculdade com a venda do trabalho da oficina. Toda família trabalha e sabe mexer com o artesanato.
Voltamos do passeio e fomos jantar de novo no restaurante da Lizeth. Saímos de lá cedo de volta para a Finca, mas mesmo assim o senhorzinho descumpriu o combinado e nos deixou trancado do lado de fora! De novo!!! Mas dessa, pelo menos, vez estávamos com a Tanajura. E como a nossa menina estava um pouco acima do peso para pular o muro com a gente, decidimos ir dormir na praça principal. Conversamos com os vigias dos prédios públicos ao redor da praça que nos garantiram que iam nos proteger! (não que a cidade apresentasse qualquer risco ) E ali armamos “acampamento”.
E foi assim nossa intensa passagem por Gracias. A simpatia e acolhimento de seus cidadãos nos permitiram conhecer a fundo suas histórias de vida e enriquecer um pouco mais as nossas próprias. Realmente tocou nossos corações.