Ficha 4×1
Data: 14/01/2013 à 16/01/2013
Saímos de: Caye Caulker (Belize City) – Belize
Distância total: Aproximadamente 120 km
Onde dormimos: Nas barracas. Na vaga da garagem do pequeno hotel (estilo pousada) chamado Pinky Cullerton, onde também vive a senhora Pinky – a proprietária.
Pneu Cheio: O contato com a cultura Garífuna e a experiência de assistir aula ao lado de crianças de 5 a 12 anos num colégio Belizenho foi algo realmente transformador!
Destino final: Dangriga – Belize
Tempo de viagem: Pouco mais de 2 horas.
O que comemos de bom: Os pratos preparados pela dona Pinky nos lembravam muito nossa comidinha brasileira feita em casa. Arroz, salada, legume cozido, salada junto com um bife ou peito de frango.
Pneu murcho: Infelizmente como todas as cidades belizenhas continentais, Dangriga ainda não está preparada para atrair um turismo mais denso pela carência de hoteis, restaurantes e o próprio museu Gulisi Garífuna que não recebe manutenção há um bom tempo.
Trajeto: Belize só possui poucas estradas principais. Seguimos as placas pela Western Highway.
“Saindo da movimentada Belize City nos afastávamos do litoral norte Belizenho e adentrávamos um pouco mais o interior do país. A estrada que nos conduziu para Dangriga cortava serras e campos férteis onde se podia observar largos campos de monocultura de cana de açúcar e laranja – dois dos principais produtos de exportação do país. Avistávamos também comunidades campesinas de origem mestiça que viviam da agricultura, assim como seus descendentes maias. Diferente de Belize City, as vilas ali eram mais limpas e bem cuidadas e a estrada exalava um delicioso perfume das flores que acompanhavam alguns trechos da principal rodovia do país. E ao baixar novamente ao litoral teríamos uma das mais ricas experiências culturais que tivemos em Belize, e talvez da América Central: o contato com a cultura Garífuna!”
A passagem por Dangriga já começou de forma inusitada. Tão logo conseguimos um cantinho para abrir nossas barracas na parte externa de uma pequena pousada, dois professores universitários e seu grupo de alunos, todos estadunidenses, nos bombardearam de perguntas! O grupo de aproximadamente 15 jovens, na faixa dos 19 anos, estavam perplexos em ver um carro brasileiro, com 5 marmanjos, que rodavam as Américas em suas barracas coloridas, e que paravam ali! na pousada em que estavam hospedados! (E eles nem imaginam o quanto nós também estávamos curiosos em saber o que eles também faziam ali!) Depois de respondermos às inúmeras perguntas que já estamos acostumados, como “como tiveram a ideia?”, “por quanto tempo planejaram?”, “como é viver em 5 pessoas de forma tão intensa?”, “qual a maior dificuldade que enfrentaram?”, etc., etc., descobrimos que os jovens eram, em sua maioria, primeiro anistas da faculdade católica Holy Cross College, do estado norte-americano de Massachussets.
Há quase uma década, o Father John (o padre que coordena o grupo) leva, anualmente, um grupo de estudantes de diferentes cursos da área de Humanas para Belize, numa atividade de intercâmbio e imersão cultural. Os grupos, em sua maioria compostos por meninas, são normalmente de estudantes interessados em se tornarem professores. Provenientes de diferentes disciplinas como Pedagogia, Psicologia, Ciências Sociais, etc., os jovens aproveitam suas férias de faculdade para conciliarem a oportunidade de viverem por algumas semanas em um país de língua inglesa, e subdesenvolvido, (uma realidade TOTALMENTE diferente da que estão acostumados) com a possibilidade de exercitarem técnicas e conceitos aprendidos em seus cursos, permeando um intercâmbio com as professoras locais. Por serem muito novos, acabam absorvendo muito da experiência de estarem ao lado de professores mais experientes! Um projeto muito bacana!
Janta preparada e servida pela dona Pinky (a proprietária da pousada), colhemos algumas dicas com o grupo e na manhã seguinte partiríamos para conhecer a incrível história e relevância de Dangriga para Belize: a cultura do povo Garífuna!
Logo pela manhã partimos para o pequeno e humilde museu chamado ‘Garífuna Gulisi Museum’ e com a orientação de uma própria mulher garífuna (devidamente vestida como uma típica Garífuna) viajávamos no túnel do tempo, para uma história muito distante da que estamos acostumados a aprender nas escolas brasileiras…
Tudo remonta à chegada dos povos Kalinago (indígenas provenientes da região do Delta do rio Orinoco – atual Venezuela) à ilha de São Vicente (atual ‘São Vicente e Granadinas’), no Caribe. Bravos guerreiros, os Kalinagos logo entraram em choque com os Arawks, primitivos do Caribe, que viviam na região. Com a morte da maioria dos homens, os Kalinagos fizeram das mulheres Arawks suas esposas, miscigenando ambas as raças e formando o que posteriormente os ingleses chamariam de ‘Red Caribs’, ou ‘Caribes Vermelhos’.
No entanto, por volta dos anos de 1635 a 1675, homens de origem africana chegam à ilha. Como assim?! Pois é, tinha a mão dos ingleses nisso aí… é claro! Sobreviventes de diversos naufrágios de navios ingleses (que transportavam os africanos para trabalharem como escravos em suas províncias nas ilhas das Antilhas esses homens nadaram até a costa de São Vicente em busca da liberdade e de começarem uma nova vida. Mas logo que os encontraram vivendo ali, os ‘Red Caribs’ não deixaram barato. Após inúmeros conflitos e uma miscigenação entre eles (que contou até com alguns poucos espanhóis que ali também se encontravam), uma parte dos negros prevaleceu, adotando muito das culturas locais e formando uma nova “etnia” na ilha: os ‘Black Caribs’, ou ‘Caribes Negros’. Essa nova população de ‘Black Caribs’ passa a ser conhecida posteriormente como Garífunas!
A partir de 1750 a ilha de São Vicente estava dividida entre os ‘Red Caribs’, os Garífunas (ou ‘Black Caribs’) e um grupo de franceses. Franceses?! Sim, expulsos pelos ingleses de outras ilhas caribenhas e que também haviam disputado com os Caribes locais por um pedaço de terra para cultivo. No entanto, a chegada dos ingleses causaria um grande distúrbio na ilha.
Os britânicos queriam dominar a ilha inteira para expandir seus lucrativos mercados açucareiro e escravista e, assim, tomar total controle das ilhas das Antilhas. Isso provocou uma guerra de mais de 32 anos entre os ingleses contra os Garífunas, que no início contaram com o apoio dos franceses. Depois de muitas batalhas e mortes, os ingleses finalmente tomaram total controle da ilha: expulsaram os franceses e conseguiram a rendição dos Garífunas.
No entanto, como os Garífunas eram de pele negra, sua liberdade de ir e vir pela ilha incomodava o plano inglês em escravizar os negros trazidos da África que viam nos Garífunas uma chance de também se tornarem livres. Começa assim uma perseguição aos Garífunas que passam a buscar residência em outras ilhas das Antilhas e até alcançarem a costa dos países centro-americanos. Nesse período o número total de Garífunas quase não passa a casa de 200 pessoas!!! Enfim, após a independência dos países centro-americanos contra a Espanha, como Honduras, Guatemala e Nicarágua, a maioria dos Garífunas migraram para Belize onde uma grande população de Garífunas já habitavam na cidade de Dangriga: que por muitos anos foi a segunda maior do país!
Em torno de 1920, Thomas Vincent Ramos buscou ajuda comunitária e de saúde pública criando instituições de apoio ao povo Garifuna afim de manter suas teadições. Em 1941 foi criado um feriado (19 de novembro – data da chegada deles em Belize) em celebração à herança cultural Garífuna.
O museu que visitamos é em homenagem a Gulisi uma das primeiras mulheres Garífunas a chegarem a Belize com seus 13 filhos, iniciando a ocupação do território e os primeiros povoados. A história de Gulisi e sua chegada a Belize foi transcrita via história oral através de sua neta. Os Garífunas estão hoje por toda a parte na pequena cidade de Dangriga que conta com apenas 9 mil habitantes (Belize todo tem apenas 356 mil!). Seu idioma, que ao contrário do que muitos pensam, não tem nada de africano. É composto basicamente pela língua dos ‘Red Caribs’ (Arawk e Kalinago – de origem dos indígenas sul-americanos) e com influência inglesa, francesa e um pouquinho de espanhola. Além da língua, sua cultura, música e dança típica é considerada pela Unesco como uma obra-prima da herança oral e intangível da humanidade!
Em Dangriga também pudemos ter outra incrível experiência. Com a autorização do Father John e acompanhado de 3 dos estudantes estadunidenses, a Expedição 4×1 voltou à escola! Saímos logo cedo para a Holy Ghost School para conhecermos de perto uma verdadeira sala de aula Belizenha! Nos dividimos em 2 grupos para não tumultuar muito as salas de aula. Ficamos no colégio durante dois turnos de 45 minutos cada e pudemos presenciar aulas de duas disciplinas e de duas diferentes faixa etárias: entre 5 a 12 anos.
Temos que confessar que essa experiência tocou forte em nosso coração. Nunca imaginávamos estar novamente sentados nas carteiras de uma verdadeira salada de aula do primário. Foi gostoso estar de novo no colégio… participar da chamada, ver as mochilas bem arrumadas, acompanhar a professora com um livro e ver a criançada levantando a mão pra responder uma pergunta. Ainda mais no meio de crianças tão dedicadas e participativas!!! As vezes dava até vontade de levantar a mão para responder uma pergunta de matemática ou de geografia. A empolgação das crianças em participar da aula é similar ao prazer dos adultos em interagirem conosco nas ruas. Mais legal ainda é ver a professora trocando de idioma entre inglês e garífuna para explicar algumas coisas aos alunos!
Ao final da aula, tivemos uma ótima oportunidade de conversarmos com as professoras belizenhas, que nos contaram sentir muito orgulho do que fazem. Não só naquele colégio, mas pelo que vimos nas caminhadas que realizamos à tarde enquanto estivemos lá em Dangriga, as escolas estavam sempre cheias de alunos nos horários determinados! Todos bem arrumadinhos com uniformes bem elegantes. Esperando ansioso o sinal para saírem para o pátio e jogarem bola (em um dos finais de tarde estávamos nós lá, no meio de mais de 20 jovens negros com, em média, 1,80m de altura! Não precisa nem dizer o quanto voávamos nas trombadas, né?! hahahaha) Voltando ao assunto da educação, pelo que as professoras nos contaram, e por ver o entusiasmo das crianças nas salas de aula, é só esperarmos para vermos nos próximos anos um quadro de mudança no país para melhor! Afinal é preciso reverter a atual situação social e econômica de um povo que foi altamente explorado pelos ingleses e que hoje depende basicamente da exportação de commodities agrícolas como cana de açúcar, frutas cítricas e bananas. Mas triste foi saber que os estudantes tem uma taxa de apenas 25 dólares belizenhos (cerca de R$ 25,00) anuais para pagar à escola e mesmo assim entre 25 a 40% não tem condições de pagar!
Em um dos finais de tarde também fomos acompanhados por um senhor andarilho e mal vestido que nos disse que, por uns trocados, nos daria um “tour” pela cidade. No início desconfiamos, mas depois de um curto papo, topamos o passeio. Contando histórias e cumprimentando os locais, o senhor nos levou para conhecer ao vivo o trabalho do mestre artesão de Dangriga: o senhor Austin Rodriguez. Em sua humilde oficina à beira da praia, Mr. Rodriguez produz há anos os mais famosos tambores que são vendidos por toda Belize e ajuda a manter a tradição musical do povo Garífuna.
Durante as festividades de natal e ano novo, os Garífunas performam uma dança típica chamada Wanaragua. Nela, jovens do sexo masculino usam máscaras femininas e se vestem com roupas de mulher (da cabeça aos pés numa espécie de disfarce) e dançam ao ritmo das batidas dos tambores (como os feitos pelo senhor Rodriguez). Essa dança mantém viva uma tradição oral Garífuna acerca de uma estratégia elaborada por um de seus principais líderes: Satuye. Diz a história que Satuye vestiu seus homens como mulheres para surpreenderem os ingleses que entravam em suas propriedades “inocentemente” sem esperar resistência masculina. Assim, de forma astuta, os ingleses foram surpreendidos pelas falsas-mulheres Garífunas que os desarmaram e os derrotaram.
Os Garífunas de Belize são hoje em torno de 15 mil pessoas e representam aproximadamente 30% do total existente no mundo (em sua maioria na América Central). Eles estão por toda parte na pequena cidade de Dandriga: seja nas salas de aula, nas lojinhas de artesanato, na pesca ou no comércio. São um grande exemplo da resistência à colonização europeia e da luta pela preservação da riqueza e unicidade da riqueza de um povo. No caso deles, a excepcional cultura afro-caribenha!
2 Comentários
Vcs talvez não saibam, mas os nossos indígenas possuem o mesmo artefato, TIipiti, como é chamado em Belize, e usam com o mesmo objetivo. Agora por aqui eles tem uma versão pequenininha, que as índias colocam e puxam no dedo do “escolhido por elas” e digo; não é nada fácil retirá-lo! continuem numa boa viagem!
Oi Geyza!! A gente viu esse artefato pequenininho em Belém, em uma loja de artesanatos indígenas! É incrível pensar que essas culturas tem laços tão próximos, não? Tendo isso em vista, não há dúvidas de que os Garífunas tem sua origem relacionada com os indígenas do Delta do Orinoco (Venezuela).
Abraços!!